POR MAIS SOLAR QUE SEJA O CORAÇÃO

Eugénio de Andrade

A HOMENAGEM QUE FALTAVA


Cometemos, porventura, uma injustiça ao só agora homenagear Eugénio de Andrade na Feira do Livro do Porto. É talvez extemporâneo este reconhecimento da vida e obra de um autor maior da língua portuguesa. Não sei se sopesámos devidamente quanta luz, sal, verão, azul, orvalho, amor entregou o poeta ao Porto em versos escritos com “mão certeira com a água/ intimidade com a terra/ empenho do coração”.


Mas está devidamente reparada a injustiça. Há uma tília para Eugénio, uma das muitas árvores que, com uma extraordinária força evocativa e emocional, o poeta cantou na sua obra. “Sem fadiga, as árvores regressam/ ao poema. Primeiro as laranjeiras,/ a seguir entram as tílias./ Sempre estiveram perto, incapazes/ de se afastarem dos pequenos/ olhos imensos”.


De resto, o universo lírico do poeta ressoa intensamente nos Jardins do Palácio de Cristal. Para além das tílias, avultam muitas outras árvores e flores, folhas e ervas, frutos e aves – elementos recorrentes e simbólicos na poesia eugeniana. Eugénio ficaria contente com esta homenagem no meio da natureza, entre o arvoredo encabritado sobre o rio e ao longe a névoa tocando as pontes.


É também a homenagem da sua cidade. Apesar de ter nascido na Póvoa de Atalaia, em 1923, Eugénio estava fortemente comprometido com o Porto, onde viveu mais de 50 anos. Foi aqui, em grande medida, que o “poeta da luz” forjou a sua identidade pessoal e literária. E é também verdade que o Porto ganhou uma outra aura, uma outra dimensão nos versos de Eugénio de Andrade.


Vários dos seus poemas traduzem a singularidade desta cidade, a têmpera granítica das suas gentes, o bucolismo melancólico dos seus jardins, a austeridade penumbrosa das suas ruas. “O Porto é só a pequena praça onde há tantos anos aprendo metodicamente a ser árvore, procurando assim parecer me cada vez mais com a terra obscura do meu próprio rosto”, escreveu.


Tardia ou não, esta é a homenagem que Eugénio merecia. No Porto e pelo Porto.


RUI MOREIRA

Presidente da Câmara Municipal do Porto



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"VOA CORAÇÃO.

OU ENTÃO ARDE."

(Eugénio de Andrade)


Desde cedo me encontrei desinteressado de coisas que interessavam à maioria. Na adolescência, tive duas fascinações: a santidade e a poesia. A santidade, adeus, aos catorze anos isso estava arrumado. Ficou a poesia.

São palavras de Eugénio de Andrade, o poeta homenageado nesta edição da Feira do Livro do Porto.

A poesia de Eugénio de Andrade, o “poeta da luz”, transmite-nos verso a verso o sentido do maravilhoso e da plenitude.

A função da poesia é “desmascarar através da luz”, clamava Sophia.

"Toda a poesia é luminosa, até a mais obscura”, escreve Eugénio de Andrade no seu poema “Ver claro”.

Queremos que a Feira do Livro do Porto seja um espaço de luz e de cumplicidades, onde possamos celebrar a Vida através da palavra e do gesto preciso e cristalino dos nossos escritores e artistas convidados.

Depois de Vasco Graça Moura, Sophia, Ana Luísa Amaral e Manuel António Pina, chegou o momento de homenagearmos Eugénio de Andrade, poeta indissoluvelmente ligado a este Porto solidário e coriáceo onde a “palavra liberdade é menos secreta”.

Construímos um programa literário fecundo, inclusivo e contagiante, inspirados num conselho de Eugénio:

Sê paciente; espera / que a palavra amadureça / e se desprenda como um fruto / ao passar o vento que a mereça.

Não escondemos ainda que o Amor, tantas vezes glosado por Eugénio, e a Liberdade livre, proclamada por Rimbaud, continuam a ser as bandeiras que animam e norteiam a nossa ação.

Durante 17 dias poderão descobrir uma programação lucipotente, onde não faltarão mesas de debate e conversas com escritores, concertos ao fim da tarde, leituras encenadas, lançamentos de livros, sessões de spoken word, recitais de poesia e momentos de stand-up comedy e stand-up poetry.

Em suma, o Porto ao ritmo das emoções e do coração solar de muitos “sonhadores espacializados”, onde não faltarão nomes como Dulce Maria Cardoso, Isabela Figueiredo, José Luís Peixoto, Yara Monteiro, Pilar del Río, Carlos Tê, António Zambujo, Nuno Artur Silva, Martim Sousa Tavares, Ana Zanatti, Gonçalo M. Tavares, Patrícia Reis, Pedro Mexia, Valter Lobo, emmy Curl, Ana Deus, Leo Middea, Milhanas, Gisela João, Teresa Coutinho, Mia Tomé, Álvaro Laborinho Lúcio, Ana Paula Tavares, Pedro Lamares, Filipa Leal, Tatiana Faia, Daniel Jonas, Margarida Vale de Gato e Ivo Canelas, entre muitas outras presenças.

Um programa para que nunca se extinga “o lume da palavra, o seu lume breve”.


João Gesta

Coordenador de Programação da FLP 2024



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O TRABALHO DE UM POETA


Com a musicalidade e limpidez comunicativa dos seus versos, cantor da luz e do desejo, Eugénio de Andrade foi um poeta iniciático para tantos leitores, e também as suas traduções e as antologias de Camões e de Pessoa, ou a mais abrangente Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, foram decisivas no contacto de muitos com o espanto de uma «língua dentro da própria língua», lembrando um verso de Herberto Helder.


E não será estranho instilar aqui outro poeta para falar de Eugénio. É que por todo o espaço da língua portuguesa, e de forma quase literal no Porto, onde viveu a maior parte da sua vida, Eugénio, pelo rigor e inteireza com que habitava a sua arte, parecia personificar a própria poesia. Uma poesia solar e amante, sem dúvida, mas também feita — e agora sim, ouçamo-lo — de uma «palavra de aflição mesmo quando luminosa», de uma «mistura de brutalidade e ternura». Sobretudo, uma poesia «inimiga do poético», quer dizer, da gratuitidade no uso da palavra.


A exactidão que Eugénio procurava era bem mais do que, digamos, linguística — era a poesia como «arte de ser». Preocupava-o a integridade da experiência humana, e guardá-la, dar dela testemunho, ajudar os seus contemporâneos a «suportar o peso do mundo» seria o trabalho de um poeta.


Eugénio, no fluir elementar dos seus versos, buscava a «fidelidade à terra» e às fontes, a transparência, o desvelamento — a verdade, se ousarmos hoje uma palavra assim. Poeta do despojamento e da contenção, não deixa de ser emotivo, fulgurante, mordaz, por vezes de uma secura crepuscular, e capaz de atrito. Por mais solar que seja a sua poesia, será também e sobretudo áspera para com «um tempo em que tudo o que era nobre foi degradado, convertido em mercadoria».


É o empenho de um poeta, habitante do Porto (e cioso como poucos das suas árvores, pelo que ser-lhe-ia a Tília, suspeito, toda a homenagem necessária), um dos nossos melhores artífices, que esta edição da Feira do Livro quer celebrar. Empenho em cantar o corpo desejante e consubstancial à terra, em inscrever-se contra a mercantilização e o deslassar das relações humanas. Empenho em olhar o Porto, mesmo se se manteve «um homem do sul», em escrever a «acidulada melancolia barroca» da cidade, a sua gente e os seus artistas. E sobretudo empenho — consciente, como era Eugénio, de escrever numa língua em que Camões, Pessanha e outros tinham feito «música magnífica» — em criar uma das grandes cintilações da poesia portuguesa.


Andreia C. Faria

Comissária da Homenagem a Eugénio de Andrade


*A Autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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