O REGRESSO DA PALAVRA
A 7ª Edição da Feira do Livro organizada pela Câmara Municipal do Porto nos Jardins do Palácio Cristal decorre em ambiente particularmente desafiante e marca a retoma das atividades culturais públicas do município, interrompidas pela pandemia. E quisemos, por isso, que o seu programa fosse mais plural, ainda que a sua organização esteja limitada pelos condicionamentos sanitários.
Nesta Feira do Livro, cuja programação foi coordenada por Nuno Faria, celebramos a escrita e a liberdade. Redescobrindo a obra de Leonor de Almeida, homenageando a figura ímpar de Maria de Sousa, evocando vozes esquecidas, retomando as celebrações da Revolução de 1820, também elas suspensas por este flagelo.
A realidade que vivemos transcende a ficção e assume, aqui e ali, contornos absurdos e paradoxais, mas não podemos deixar que condicione a nossa capacidade e predisposição para usufruir de tudo aquilo que a cultura nos proporciona. Porque é a cultura que nos permite interpretar o tempo e as suas arritmias, e que nos ajuda a redescobrir trajetos e a entrever oportunidades antes esquecidas.
Rui Moreira
Presidente da Câmara do Porto
ESCRITA ESCUTA
O livro é um objeto mágico. Contém poderes, faz circular forças, transporta-nos no tempo e no espaço e, nos momentos de solidão, é uma companhia que jamais falha.
Mas o livro também agrega e congrega, convoca o encontro e a partilha — o livro e a leitura provêm de uma tradição arcaica, ouvir o outro. A palavra dita ou soprada, as histórias contadas, confundem-se com a origem da humanidade e,sem risco podemos dizê-lo, dão corpo à noção de comunidade.
O livro é, pois, um objeto silencioso e sonoro, define, simultaneamente, um espaço interior — íntimo — e um espaço público.
A edição de 2020 da Feira do Livro ocorre, como horizonte de esperança, num mundo diferente daquele que conhecíamos antes da pandemia, com gestos novos e num clima de incerteza quanto ao futuro que nos espera. Como viver juntos, como respirar juntos? São interrogações que ganham hoje novos significados, novas aceções, e que,ademais, pedem a invenção de novas práticas sociais e de entendimento de nós mesmos como seres vivos, seres com uma existência.
Enquanto primeiro evento realizado em espaço público depois da pandemia à escala global, a Feira do Livro acontece no cenário de sempre, hoje mais simbólico que nunca: os jardins do Palácio de Cristal. Estranha circulação a que se estabelece entre as árvores e os livros... Aprendemos com as árvores o tempo da respiração e da espera, o ofício de uma existência mais lenta e contemplativa.
Entre árvores, a Feira do Livro celebra a escrita e a escuta. Este ano teremos a alegria de revelar uma poeta cuja obra(e a vida) se perderam, algures, no labirinto do tempo. Leonor de Almeida, nascida no Porto em 1909, autora de quatro livros de poemas, editados entre 1947 e 1960, virtualmente esgotados, renasce como escritora através da reunião e reedição da poesia completa.
Evocar os poetas anónimos ou esquecidos, celebrar as vozes de mulheres tantas vezes silenciadas pela aspereza do tempo e a falta de memória, reescrever a história no feminino, é uma forma de nos reconciliarmos connosco próprios e com a condição solitária e comunitária da escrita.
Reunindo um conjunto plural de programadores, a Feira do Livro de 2020 apresenta o programa mais amplo de sempre, propondo ao visitante, a um tempo leitor e ouvinte, lições, debates, conversas, concertos, sessões de cinema,oficinas, espetáculos, e mais ainda.
Apresenta-se sob o signo da resistência: ao esquecimento, ao isolamento, à perda de memória.
Tornarmo-nos árvores para salvar o mundo.
Nuno Faria
Coordenador programático da FLP 2020
Diretor artístico do Museu da Cidade
LEONOR DE ALMEIDA
Quem foi Leonor de Almeida?
Com o mesmo nome da Marquesa de Alorna, esta outra Leonor foi das mais invulgares
poetas do séc. XX.
Em tempos aclamada por inúmeros críticos literários, de João Gaspar Simões “[...] dos melhores poetas portugueses
contemporâneos” a Jacinto Prado Coelho “[...] uma personalidade lírica invulgar”, passando por Alberto de Serpa “[...]
uma faceta nova do feminino na poesia portuguesa” e Artur Portela “[...] dos casos mais extraordinários da poesia
moderna”, foi considerada em 1951, pela revista A Serpente, como autora dos “[...] mais fortes poemas até hoje assinados
por um nome de mulher em Portugal.”
A sua obra foi incluída em diversas Antologias, como Poesia Erotico-Satírica de Natália Correia, Antologia da
Novíssima Poesia Portuguesa de M. Alberta Meneres e E. Melo e Castro. Colaborou com poemas, artigos e entrevistas
nos principais jornais e revistas dos anos 40–50. Viveu em Londres, Paris, Copenhaga. Publicou 4 livros de poesia. E
depois desapareceu, e foi esquecida.
Em 2020 cumprem-se 111 anos do seu nascimento, o de uma figura ímpar na cultura portuguesa, que, como mulher e
como poeta, esteve sempre muito à frente da época em que viveu.
Leonor, que habitou incógnita em Lisboa nos últimos anos de vida, morreu sozinha, em dia desconhecido de Maio de
1983.
Nasceu a 25 de Abril. Foi poeta, enfermeira, fisioterapeuta, esteticista, mãe, viajante, aventureira, corajosa, pioneira,
mas acima de tudo, livre.